quinta-feira, 30 de junho de 2016

Super Flumina Babylonis

Cristianismo e neoplatonismo num conto de Jorge de Sena

Jorge Cândido de Sena (1919-1978), camonista luso-brasileiro, empenhou anos de sua vida aos estudos da produção poética de Luís Vaz de Camões (1524-1580), a quem consagrou alguns escritos não só de crítica, mas de criação literária. Uma dessas composições foi o_conto «Super Flumina Babylonis», dado a lume, pela vez primeira, no livro Novas andanças do_demônio (1966), havendo sido republicado em Camões dirige-se aos seus contemporâneos e outros textos (1973). Nesse conto, há traços de Neoplatonismo, que influenciou composições poéticas de Luís de Camões, o qual, como personagem protagonística do precitado conto, nele é apresentado qual alguém alquebrado e alijado do direito de continuar ladeando a Poesia. 
A estória «Super Flumina Babylonis», centralmente, «[...] toma por base a biografia de Pedro de Mariz, impressa na edição de Os Lusíadas comentados pelo padre Manuel Correia em 1613 [...]» (Neves, 2011, p. 901). É nesse conto que irrompe, «[...] ficcionalmente, um Camões doente e alquebrado, abandonado por todos e pela poesia no momento de compor a paráfrase do Salmo 136 [...], paráfrase essa que lhe havia sido encomendada e que o poeta transforma no seu "testamento poético”» (op. cit., idem, ibidem). Sobre Jorge de Sena, diz-se que suas histórias são «[...] narrativas nas quais se compaginam o dado imaginário, eruditivo e observado, num amálgama alegórico, que [...] se cristaliza num realismo mágico ou poético» (Moisés, 1975, p. 29), o que observamos na_diégese do «Super Flumina Babylonis», sobre cujo protagonista, Luís de Camões, não se vê demérito algum em, ainda hodiernamente, enxergá-lo qual um dos representantes-mores do homo universalis, «[...] tipo modélico que o_Renascimento fixou [...], figura ideal do homem no seu tempo [...]» (Spina, 2010, p. 40), em que Camões viveu. Demais, do «Super Flumina Babylonis», o_motivo, «[...] elemento linguístico que recorre com insistência na obra de um escritor [...]» (Weber apud Moisés, 2004, p. 310) não nasce, exclusivamente, do Cristianismo, mas também do Neoplatonismo, redivivo na Theologia Platonica, de Marsílio Ficino (1433-1499), filósofo neoplatônico humanista, em cujo predito livro veem-se caracteres anímicos encontrados por Platão de Atenas (ca. 428-347 a.C.) no diálogo Fédon, que explana a psicagogía, a qual explica o destino que as almas recebem post mortem, conceito que introduz o texto ficiniano com os dizeres si animus non esset immortalis, nullum animal esset infelicius homine, — se a_alma não fosse imortal, nenhum animal seria mais infeliz do que o homem» — (Ficino, 1965, p. 76), do que, direta ou indiretamente, parece haver-se servido Jorge de Sena quando erigiu seu «Super Flumina Babylonis».
Um dos recursos mais usados na literatura contemporânea é a intertextualidade, que abarca «[...] uma noção poética, e a análise está aí mais estreitamente limitada à retomada de enunciados literários (por meio de citação, alusão, desvio etc.) [...]» (Samoyault, 2008, p. 13), compreensão sem a_qual é impossível auferir, por anagnórise, o_conhecimento onomástico da personagem sobre quem incide o «Super Flumina Babylonis», já que, em nenhum momento, se apresenta o nome de Luís de Camões nessa tessitura, o que, por conseguinte, somente permite ao leitor razoavelmente familiarizado com a produção camoniana a noção de que tais prosaicos escritos têm o maior poeta quinhentista lusitano como protagonista. Por tal, conhecer elementos intertextuais é de inegável importância naquele texto, para que se comente, analise e interprete essa prosa de ficção por meio de uma associação que a ponha no patamar filosófico-teológico alusivo ao Neoplatonismo e ao Cristianismo.
No «Super Flumina Babylonis», existe um trecho em que, quase imperceptivelmente, ocorre uma intertextualidade stricto sensu, em que, imersa na narrativa do solilóquio de Luís de Camões, aparece, de súbito, a sentença «Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que, para mim, bastava Amor somente», a qual, portanto, configura-se como diálogo intertextual por citação, «[...] retomada explícita de fragmento de texto no corpo doutro texto [...]», o que, na literatura contemporânea, apresenta «[...] modo novo de citar sem os usos de marcações explícitas, prática que já vem se tornando comum. A percepção da cultura como mosaico permite criação de textos de natureza citacional» (Paulino et al., 1995, p. 28). Noutro passo, novamente se faz diálogo intertextual desprovido de sinais tipográficos citacionais, visto nas últimas linhas do conto: «[...] Sobre os rios que vão por Babilônia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei...», do que se percebe, com bastante clareza, a origem dessa passagem, que foi, ipsis litteris, transcrita do poema «Sôbolos rios que vão», mais especificamente, da inicial quintilha heptassilábica de que se compõem esses camonianos. Nesse ponto, observa-se a intencionalidade do narrador do conto e Sena, isto é, possibilitar que tanto a vida quanto a obra de Luís de Camões sejam postas, à guisa de «manuscrito autógrafo», ou mesmo de «legado poético-teológico», em um documento que queira, embora ficcionalmente, fazer-se sentir, autenticamente, feito pela pena de Camões.
O título «Super Flumina Babylonis» demonstra intertextualidade citacional, mas, nesse caso, tirada da primeira versão latina da Bíblia Sagrada, a_Vulgata Editio, vertida por Eusébio Sofrônio Jerônimo (347-420). É graças ao “Salmo 136”, posto nesse compêndio, que Jorge de Sena chamou seu conto de «Super Flumina Babylonis», porque, ipsis verbis, é o sintagma que abre aquele salmo: Super flumina Babylonis illic sedimus et flevimus, cum recordaremur Sion (Biblia Vulgata Latina, 1999, p._352), que, na língua portuguesa, lê-se: «Junto aos rios de Babilônia nos assentamos e choramos, lembrando-nos de Sião» (Bíblia Sagrada, 2008, p._773). Isso explica por que Jorge de Sena denominou seu texto com a frase em língua latina. Fê-lo também porque sabia aonde chegaria o_deslinde do padecimento sentido e suplantado pela personagem Luís de Camões. Nem é descabida a escolha do nome «Babilônia», pois esse termo toponímico, mesmo extraído do contexto histórico judaico da Bíblia Sagrada, mercê do «Salmo 136», apresenta significado metafórico que transcende o parco valor da semântica toponímica na qual se assenta aquele termo, o qual é figurativizado, então, qual um «[...] lugar de perdição» (Sena apud Fernandes, 1980, p. 113), de_onde as almas devem-se distanciar, porque, caso não o façam, serão mortas pela «[...] grande Babilônia, mãe das prostituições e abominações da terra» (Bíblia Sagrada, op. cit., p. 361), em que o_aposto descreve todos os perigos de que quaisquer almas precisam manter-se apartadas, com o fito de jamais perecerem.
Tornando-se à questão dialógica do «Super Flumina Babylonis», ela é pouco explorada materialmente, ou seja, mediada por efetiva manifestação oral de interlocutores, numa natural conversação, na medida em que esta «[...] é a_primeira das formas de linguagem a que estamos expostos, e a única da qual não abdicamos pela vida afora» (Marcuschi, 2003, p. 14), pois «[...] é gênero básico da interação humana» (op. cit., idem ibidem). Porém, levantando-se contra essa naturalidade conversacional, Camões deixa que sua progenitora teça copioso monólogo, ignorando-se-lhe as essências de tudo que ela se esforçava por incutir na mente do melancólico «barão assinalado», cujo sinal — se ainda havia algum — equiparar-se-ia ao recebido por Caim, em que se sentiria indizível fardo nascido do «desconcerto do mundo», de que, conscientemente, o arruinado Camões se via culpado. Mas isso não bastava para dissuadir sua mãe da missão de que se autoincumbira. Ao contrário, ela procedeu à maneira de outra genitora cujo filho relutava em singrar rumo à fé dada por Jesus Cristo. Essa mãe se chamava Mônica. Seu rebento, Aurélio Agostinho, o_mesmo que, após três decênios de existência, rendeu-se espiritualmente, tendo-se convertido ao Cristianismo. Esse filósofo recém-cristianizado, nas suas Confissões, falou com Deus: «Mas vós, do alto, estendestes a mão e arrancastes minha alma dessa voragem tenebrosa, enquanto minha mãe, vossa serva fiel, junto de vós chorava por mim, mais que as outras mães choram sobre os cadáveres de filhos. Ela [...] via a morte da minha alma» (Agostinho, 1999, p. 94). Da mesma maneira, pois, que Agostinho teve seus olhos abertos às verdades divinais a partir das súplicas maternais, sucedeu outro tanto a Camões. Na narrativa sobre a hora do ocaso camoniano, porém, é aparente que o_protagonista achou-se arrebatado, «[...] impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia» (Sena, 1982, p. 226), sendo esse o aguardado momento epifânico, que independeu da conversação em prol da elucubração.
Nas derradeiras linhas do «Super Flumina Babylonis», quando Camões principiou uma composição dos versos do «Sôbolos rios que vão», aqueles que se colocou a esboçar, «Sobre os rios que vão de Babilônia a Sião assentado me achei», se lhe déssemos um hemistíquio logo após o_substantivo «Babilônia», teríamos dois versos decassilábicos, a saber, «Sobre os rios que vão de Babilônia» e «a Sião assentado me achei», em que Camões estaria a pôr o estilo estrutural épico. Dada a reação dita pelo narrador do «Super Flumina Babylonis» sobre sua protagonística personagem, vê-se que «engenho e arte» nela não mais agem a serviço de cânticos beligerantes. Isso é ora pretérito. O neo-homem renascido «[...] começou a escrever... Sobre os rios que vão da Babilônia a Sião assentado me achei. Riscou desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilônia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei» (Sena, 1982, p. 227), prova cabal de que não mais esse poeta buscava falar de questiúnculas mundanais, mas de temas eternais. É nisso que repousa o Neoplatonismo cristianizado presente nesse conto através da persona camoniana, na qual se nota um movimento rumo ao contemptus mundi («desprezo do mundo»), «[...] conflitos de tempo e eternidade, multiplicidade e unidade, exterioridade e interioridade, vacuidade e verdade, terra e céu, corpo e alma, prazer e virtude, carne e espírito [...]», já que «[...] o mundo é vão porque é_passageiro» (Delumeau, 2003, p. 25). Estaria em Camões, nesse instante, a alma sobrepujando o_corpo, preparando-se para tornar quer ao platônico «mundo das Ideias», quer ao cristão Reino dos Céus. Em suma, as vicissitudes sofridas lograram êxito quando da tópica da «recusa da epopeia», em cujas características não mais convinha que aquele poeta se baseasse para alcançar patamares correlativos aos cantares líricos, nos quais somente elementos anímicos estão contidos. Porquanto «[...] o tema do orador cristão é sempre a revelação cristã, [...] os temas cristãos devem ser tratados em um estilo médio ou baixo [...]» (Auerbach, 2007, p. 38-39). Também «[...] a partir do significado de grau ou nível inferior, humilis tornou-se uma das designações mais usuais a estilo baixo: sermo humilis» (op. cit., p. 44), do que advém uma transição do Camões de Jorge de Sena da mera existência à vida em abundância.


Referencia bibliográficas

  • Agostinho. «Livro III». Em: Confissões. Tradução de Oliveira Santos; Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 77-96.
  • Auerbach, Erich. «Sermo humilis». Em: Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica. Tradução de Samuel Titan Júnior; José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2007, p. 29-76.
  • Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008, 1837 p.
  • Biblia Vulgata Latina: Biblia sacra iuxta vulgatam clementinam. Organización de Alberto Colunga; Laurentio Turrado. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1999, 1296 p.
  • Delumeau, Jean. «O desprezo do mundo e do homem». Em: O_pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (Séculos XIII-XVIII). Tradução de Álvaro Lorencini. Bauru, SP: edusc, 2003, p. 19-67.
  • Fernandes, Maria Lúcia Outeiro. «A transfiguração da vida em poesia e a metamorfose do homem: o Camões de Jorge de Sena». Em: Pires, Antônio Donizeti (Orgs.). Matéria de poesia: crítica e criação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010, p. 67-86.
  • Ficino, Marsilio. «Libro I, capitolo I». Em: Teologia Platonica. A_cura di Michele Schiavone. Bologna: Zanichelli, 1965, vol. I, p. 76-79.
  • Marcuschi, Luiz Antônio. «Características organizacionais da conversação». Em: Análise da conversação. São Paulo: Ática, 2003, p. 14-16.
  • Moisés, Massaud. (Org.). «O conto na literatura portuguesa». Em: O conto português. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 11-30.
  • Neves, Margarida Braga. «Jorge de Sena (camonista)». In: Silva, Vítor Manuel Pires Aguiar e (Coord.). Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011, p. 898-902.
  • Paulino, Graça et al. Intertextualidades: teoria e prática. Belo Horizonte, MG: Lê, 1995, 155 p.
  • Samoyault, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo e Rothschild, 2008, 160 p.
  • Sena, Jorge de. «Super Flumina Babylonis. Em: Neves, João Alves». Contistas portugueses modernos. São Paulo: Difel, 1982, p. 215-227.
  • Spina, Segismundo. «O maneirismo». Em: Ensaios de crítica literária. São Paulo: edusp, 2010, p. 39-65.

Adriano Tarra Betassa Tovani Cardeal (Brasil)
Bacharelado em Letras na Universidade de São Paulo (USP). Licenciatura em Letras na Universidade Estadual Paulista (UNESP), onde também é Pesquisador de Estudos Literários e Monitor de Literatura Portuguesa. Professor de Língua e Literatura Portuguesa. Poeta lírico. Artigos publicados: «Ut Theologia Poesis: Confluências Poético-Religiosas entre Luís de Camões e Ruy Belo»; «Da Praesentia Tristitiae à Praesentia Insanitatis: Diálogos Temáticos entre Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa».
(Publicado em Elipse 4)

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