I
Quando me
cheguei ao Porto em 1 de Maio/73, tomei consciência da Revolução. Bem dito,
será dizer pré-revolução. Digo isto agora, porque ela nunca namorara o meu
gado. Aliás, parece que nunca se viu que um contrabandista de gado, sempre aqui
nesta terra, tomasse algum dia, conhecimento dela. A procura era outra, vender
e comprar . bovinos, entre este Portugal e Galiza. Negócio herdado de meu avó paterno, por aqui
prosperava na pequena quinta. Que fica esta aninhada no sope da serra de Arga,
Alto Minho.
Aqui nasceu
Gabriel Fernandes, por ca cresceu e foi meu amigo. Seus pais sempre foram
considerados fidalgos, não por brasão, sim pela esbelteza e educação de boa família. Destoava apenas o
rapaz, que era um Inquieto e metediço em vidas alheias, tanto aqui, que saltava
as janelas das casas na espreita de cenas amorosas entre conjugues, como na
cidade para onde foi estudar, a reboque dos pais. Pois na cidade cedo lhe deu
na cabeça para espreitar 0 Governo, o de Marcelo. Intelectual, atolou a cabeça
com livros políticos, cartilhas gordas de dogmas, ate que lhe deu em
transcrever : frases feitas e mais tarde distribuir panfletos contra 0 regime,
… que diziam fascista, colonial. Alguns papeis aqui ele deixava, sempre que
vinha visitar-me. Nunca os lia, a minha leitura preferida era outra: aquelas
que 0 abade distribuía na missa nas
manhãs escuras de domingo. Pois em 1 de Maio fui a cidade. Aí hospedo-me em
casa de Gabriel. Se era apenas diversão 0 que me empurrava para a cidade,
também desta sorvi empurrões e turbulência. Nas ruas vi multidões aos gritos
«Abaixo o fascismo, viva a Democracia». De momenta acreditei serem preces a
algum santo milagreiro, como aqui acontece nas rezas do povo; e preces foram,
mas contra o regime. Quem me disse isto foi Gabriel e explicou-me o porquê de
eu vêr chegar carros celulares e de agua, policia e paisanos. Vimos então
prender revoltosos, enquanto o meu amigo Gabriel ditava ordens à toa, não sei
para onde, e não chegou a ser preso. A
quem lhe aconteceria Isso, era a uma jovem que não conseguia segurar a muleta
debaixo do seu corpo. Acabara de atirar uma pedra a um paisano de cassetete na
mão, que o deixa prostrado e virado do avesso. Com dificuldade desviei-a
daquela turbulência maldita. Em casa do meu amigo, os três falamos, cada um da sua justiça.
Foi tempo de
regressar A serra.
Porém, em
questões de politica tudo tinha outra seriedade, Reuniões politicas, pichagens
nos muros das fabricas, panfletos, etc. Nas seguintes, misslvas de rotina e
beijos de Susana que tinha muitas saudades minhas. Trocamos alguns na única vez
em que aqui vieram passar férias antes de 25 de Abril. Moça liberal nestas
coisas e decidida nos actos, não enjeitou possibilidades, quaisquer que fossem
os ciúmes de Gabriel, em ter algumas intimidades com este parolo, que eu sou.
Foi num desses dias que Susana desejou ir comigo no veículo até as raias de
Galiza; depois, por montes a custo fui levar gado para venda. Negócio concluído
e par lá ficamos duas noites. Que se digam de aventura. E a vontade de
regressar a quinta esmorecia-se ap6s cada Ioucura de amor. Como ela era a
primeira mulher que eu jamais conhecera, integralmente. Quente, modelava-se em
frangalhos em toda a curvatura do seu corpo. De pêlo preto abundante, como se
fosse um oásis no imenso deserto, a sua púbis reluzia como qualquer chamativa
miragem. Dava até pena atravessá-Ia, dava gosto deitar aí a cabeça e ouvir o
murmurar frouxo e Iíquido duma explosão lascívia, E a voz!? As palavras
soltavam¬-se como bolotas duras, saltitavam sobre o meu corpo, contudo em nada
ficariam mal se as comparássemos com o palrar duma criança. Eram sons melódicos
que, articulados, faziam mover os raios dos seus olhos escuros, os quais
pousavam naquelas faces de pele sedosa mas de tez morena. Nessa aventura Susana
proibiu-me de lhe tocar nos seios: rompiam-lhe em vulcão naquele tronco esguio;
afectariam qualquer invisual ou plantígrado táctil que ousassem constatar
semelhante rebento da natureza. Que não foi correcta, também se diga. Com que
intuito ela danificara aquela beleza viva que a fazia transportar-se sobre
outra natureza morta, as muletas, hem!? Valia-lhe ao menos a inteligência, a
força do querer, a sua Independência como mulher.
Regressamos.
Contou coisas pelo percurso, Há dois meses Gabriel dilatou-me o útero,
fecundou-o. Difícil tem sido a minha gravidez. Ultimamente tive problemas em
casa da minha mãe. Sabes, sou filha de pai vadio, repugna-ma saber que aquele
sindicalista da merda fornica a minha mãe. De Marinho seu nome, recusou sempres
qualquer tipo de contacto, promiscuo mesmo. Alem de lhe recusar respostas a
perguntas dúbias que ele insistentemente fazia. Nunca as entendi. Entendi sim a
força dele quando levei um murro num seio. E tudo Isso partiu duma discussão
com base em política. Chamei-lhe revisionista, renegado.
Palavras
últimas que meses mais tarde eu entenderia, Aprendi bem com a esterilidade
verbal entre Partidos pró Leste e grupos dissidentes mais à esquerda.
Nunca mais
tive sossego, Crescem-me agora dois caroços interiores na mama esquerda, -me
saber de piores dias. Mas tenho que a cortar, completa.
As lagrimas
bordejavam-lhe os olhos. Confidenciou-me depois que fora expulsa da Faculdade
por questões políticas, acções consideradas atentatórias à segurança do Estado,
concluía a nota a ela entregue pela Reitoria.
Quanto a
Gabriel que ficara na quinta afocinhado em estudos, dizia, é um devasso. Vê lá
tu que nunca deixou de beijar os meus seios após a desgraça! E o atingido
percorre-o com os lábios como um louco. Tenho dores horríveis, ele sabe. As
nossas cenas de amor que se metamorfoseiam em actos de puro sado-masoquismo.
Não é que desgoste…É um gozo, diz ele que não faz mal, que a água dentífrica
dissolve tudo. Mas quem não dissolve a nossa relação sou eu, sou uma louca por
ele. Também tenho momentos de libertinagem, como sabes querido Manel. E depois
tem a mania de associar metáforas com sabor a sexo em discussões políticas. O
que lhe valeu já ter sido avisado em reuniões com a célula, que seria irradiado
do movimento. Contudo, particularmente, gosto como a forma em como assume a nossa
gravidez. Deseja este filho com mais força do que eu, confesso. Não, não é pelo
facto de ser aleijada, o raquitismo, creio, não é hereditário. É que não me
entendo. Tolices…
Ao Manel
rocei-lhe um beijo na face, rechonchudo, tipo ventosa, com algum ruído também.
E fizemos o resto da viagem de volta, impregnados dum silêncio incomportável,
dum fastio comprometedor de qualquer coisa que tivéramos feito.
Chegamos.
Encontramos o restante gado com palha
nas mandíbulas, atirada da corte por Gabriel. Disse este que é salutar
as relações com os animais. Que aprendera muito acerca doutros modos de vida.
Porque desta, disse, conheço bem o peso dum corno mentalizado para o ser.. Eu
não quis entender bem aquelas palavras accionadas por um arreganhar de beiços
amarelos.: E poderia não fazer caso dessa alteração verbal, ele é sempre assim.
Talvez esse ar pestilento tenha que ver
com o facto de ele ter remexido na merda no seu curral, retorqui, em silêncio.
Um bom
jantar de despedida, e na madrugada seguinte rumaram no sentido do Porto.
Nos dias
subsequentes não mergulhei naquele pesar em que qualquer incauto amante fica.,
após uns dias de contacto íntimo. Da
política ainda era leigo, mas de questões amorosas, por elas já calcorreara com
óptimas lições. Demais a mais os dois eram meus amigos. E quanto a Susana, sei
lá se a sua ternura não fora a paga duma gratidão de tudo quanto fizera
por ela naquele dia 1 de Maio /73?!
Os meses
seguintes para mim foram importantes. Nascera em mim o entendimento sobre lutas
políticas. Politzer deixado sobre aquela estante por gabriel consegue dissolver
a névoa que eu tinha nos olhos. Aquele manual distingue-me o que era o conceito
de classe. Não eram só aquelas da escola primária, que o regime de então nos
fazia crer existir. Apercebia-me da
união entre forças que podem transformar o mundo: aí estão as classes
organizadas em partidos políticos. Partido
que, embora divergentes nos seus objectivos, podem, pontualmente, liquidar um
regime ditador, colonial, ou, em democracia, o partido no governo, A
consciência, a luta clandestina, a solidariedade entre povos e principalmente a
miséria dum povo, porem organizado, faziam parte do motor que desencadearia
qualquer Revolução ...
Mais alguns
meses, e estronda o 25 de Abril. Percorro lugares comuns próprios do frenesim
Inovador. O Prec. avançava. Manifestações, encontros dinamizadores com os
homens do M.F.A. Créditos em políticos acabados de chegar do exílio. Não me
importava que o negócio corresse mal. Até porque as fronteiras estavam mais vigiadas
por motivos de diferenças politicas entre os territórios da Península. Dediquei-me algum tempo na
criação de porcos e galinhas, facto constatado pela deficiente alimentação que
o povo vinha começando a sentir.
E o mundo é
pequeno. Deslocara-me a Viana do Castelo e ai ouço falar dum traidor, bufo da
pide, chamado Marinho, que agitara convulsões em varias fábricas para depois
entregar à polícia politica aqueles que mais se revoltavam contra a situação
estabelecida. Bem tinha razão a Susana, o gajo era um escroque. Foi preso apos
o 25 de Abril.
II
Estávamos
algures na revolução.
Recebo
carta de Gabriel, correspondência que já
não recebia desde aquele pequeno incidente com Susana. Estranho, são breves as
palavras. Viria cá no próximo fim de semana.
Susana
desapareceu, diz-me. Em Setembro/73. 0 comité tinha decidido uma operação
Importante: esconder armas G-3 roubadas ao Exército aí para os lados de Braga.
Pelo detalhe ocular de alguns, que dias depois procurei, diz ainda, tudo foi um
horror. As armas nem ousaram saltar para a terra. Apareceu de súbito uma forca
da G.N.R. e os pides. Tiroteio, pancada e fuga por entre as árvores da
floresta. Dois deles não conseguem fugir: um activista de raiz operária que,
por sorte nossa, injectado no forte de Peniche na instrução do processo, não
deixa escapar alguma denúncia. Morre ai de bronco-pneumonia. Outro, a Susana,
ficou-se por terra abraçada a sua inseparável e Insensível muleta de madeira.
Calcaram-na os filhos da puta, Desfizeram-lhe a cara linda. Perguntas, mais
questionários, e um arrogante não, que eu, contudo, sempre lhe apreciei.
Ousaram mesmo esticar-lhe a perna doente, aquele membro inestético que nunca
ultrapassou o nível do joelho da outra, Depois até lhe [oram nas entranhas,
apesar da sua gravidez; esses torcionários.. Nada mais constataram os camaradas
que, enquanto fissuravam os matagais no breu da noite, lançavam palavras de
ordem. Como as tuas, digo eu, tu és como eles, és um revolucionário de gabinete, um burguês a quem o pote apareceu
sempre debaixo do cu. E que fazias nessa noite, hem!? Continuavas a ler as
cartilhas políticas e livros pró Leste que o regime de Caetano permitia vender?
Tenho pena dela ... Gabriel rumou ao Porto.
Dizer que
alguns homens do regime fascista não tinham sentimentos é pura ficção. E que
não falavam ternamente muito mais. E dizer que não tinham família que os
acolhessem, pior ainda. Mais velho do que eu, tive um no clã. Um velho chefe de
carcereiros de Alcoentre. Solteirão, sempre visitou os meus pais. Também tinha
a sua cota parte no negócio. Desde novo o acompanhei até às raias em negócios. Tratava-me como um
filho, embora fosse apenas seu sobrinho. Dinheiro, prendas, gelados e carinho
dele recebia, às vezes contra a vontade dos meus pais. Estes deixaram de a ter
assim que entregaram a alma ao criador. Tutor ficou até eu atingir a maior
idade. Bom homem para mim. O mesmo não acontecia com os seus presos.
Impunha-lhes a repressão do Estado. Sovava-os, accionava-lhes castigos fortes,
repressivos… E não é um paradoxo querer entender isto!? Talvez o facto de
correr nele a larva homossexual fosse impulso do seu despotismo e servilismo
dum regime putrefacto. Homens desses são tigres de papel, molham-se com água e
a figura tenebrosa volatiliza-se. Talvez esse meu tio em cada gesto bruto e
violento contra qualquer incauto presidiário, desejasse, contudo, no seu âm ago
uma paz de espírito saudável materializada na sua permeabilidade anal. Enfim,
um dos retratos irrequietos de gente forte do regime de então. De momento a revolução
atravessava um período particular de instabilidade. A sua definição nominal
desaparecia ao longo dos meses. Por exemplo: que fazer a carrada de presos
políticos agora alojados na instância balnear de Alcoentre?! Sabia-se o quão de
liberdade usufruíam esses tentáculos do fascismo, atrás das grades da prisão,
Pois aquele
encontro com Gabriel incomodara - me bastante. Não lhe queria perdoar o facto
de não ter sido informado na altura do desaparecimento de Susana. Por outro
lado supus que ele ainda estava zangado comigo. Sob os factos mudamos de
opinião . Afinal tudo muda. A própria revolução se transformava num banco de
ensaios políticos. E porque de política falei ao criticar meu amigo, é ter olho
de sapo, é não entender que as modlficag5es atingem os sapiens-vivos pelo
flanco que menos resguardamos, ou seja o plano do nosso obscurantismo
metafíslco. Gabriel era um político, actuara sempre na clandestinidade, mas, de
peito aberto na rua. Depois, como os demais intelectuais que lutavam contra regime, recolheu ao bafo doentio dos
gabinetes e aí vomitava esquemas e análises que abalavam a polícia política.
Aliás, a propósito, fazia como os demais políticos que, acabados de arribar ao
pais após 25 de Abril, prometeram o novo sobre os escombros do velho.
Mas
deixemos a revolução, Se houver história no futuro, esta falara dela. Contudo
até os fascistas mudaram de cor. E o meu tio apanhou a corrente do leito. Pois antes da fuga dos pides de
Alcoentre, o velho ainda ao serviço veio cá ao Norte. Trouxe como sempre
amizade. E desta vez notícias, Fugiriam dentro de dois dias elementos da
polícia política. Alguém próximo do governo conduzia esta a operação, Depois o
mais Importante, sabia já quem fora o pide que fizera desaparecer Susana. Que
na prisão ouvira comentar esse tipo num grupo de três. Não podia haver dúvida.
A descrição que o velho fazia dos factos dessa noite de aziago, correspondia
àquilo que eu próprio ouvira de Gabriel e lera sobre umas mãos tremulas, num
panfleto, anunciando 0 desaparecimento da rapariga. A denuncia clandestina
falava num tal Meneses, que se evidenciara a espancar Susana. Esse panfleto
mandei-o então ao meu tio.
Indicou
como seria possível imobilizar ° autor do sumiço da rapariga. Participava ele
também na fuga. E uma vez cá. fora havia colaboração dum familiar de Rio Maior.
Era este um insigne informador da pide. Lavrador abastado, dono de longínquos
terrenos usurpados por partilhas meias-travessas, então empregava à jornada
largas dezenas de trabalhadores rurais, Trabalho pesado, pouco ganho, palavra
muita e eis pide a porta pela madrugada. Pois esse lavrador, por sua vez
familiar dum conhecido vociferador politico, acoitou seu afilhado, 0 Meneses,
após a enxurrada de energúmenos que brotou à liberdade.
Rápido
enviei um telegrama a Gabriel. Dentro de dois dias passaria no Porto.
Mais duas
rotações da Terra e deu-se a fuga. E na estrada circulávamos já rumo a Rio
Maior: Gabriel, o meu tio, que aproveitava a boleia e que nos proporcionaria
determinados pormenores do golpe, e eu, sempre prestável para tudo.
Não grunhia
o radio outra coisa senão o motivo que nos acelerava. Na estrada o movimento da
G.N.R. era intenso. Mandaram-nos com
stop. De início um olhar desconfiado para dentro da viatura; depois uma
amabilidade sobre uns olhos duros, porém conhecidos.
Estacionamos
junto a uma quinta. Meu tio parte, entrava nessa noite ao serviço, Os dois
tínhamos já a garantia que o agente se acoitava lá dentro. Se muitos deles
tinham fugido no sentido de Espanha, este, como alguns, no pais ficou;
derradeiramente não tinha hipótese de ir longe. Sorvedor de álcool, namorava-o
a cirrose. Em detalhe era conhecido o seu estado aparente; era aquele muito
inchado na pança, e de pele escura, palavras precisas dum velho muito meu
amigo. 0 esquema que saltitava nas nossas mãos, definia a radiografia do
interior da quinta. Bons tempos para o velho, comer era à farta a convite do
rural. Germinam as desa-venças... apenas uma cacetada pelo cu na palha do
celeiro, ah moço bem abonado em brasa, e acabam-se os convites de domingo e as
orgias gástricas.
Algumas
palavras lembrando o passado, a infância... e a noite ia já Longa. Galgamos o muro alto da quinta. Há que
correr, as traseiras da mansão esperam-nos, Trepar, é fácil. Divisamos
facilmente o pide no quarto. Dormia, Na sala grande os gonzos do relógio grande
estrebuchavam. Era então o momento próprio para saltar sobre cirrótico, não fosse alguém estar acordado, e correr-nos a tiro.
E ai está.
Há gente que é violenta por inerência à
sua estrutura interna. Gostam de espancar os Inválidos, queimar com pontas de
cigarros os olhos da vitima em questão, Ou chicotear lombos até que a carne se
grete e depois salpica -Ia com sal. Da vitima não interessam os seus gritos...
Há outros, porém, que atentos à esperada cronologia dos factos, aceitam sem
maldade, por exemplo, quatro bordoadas de marmeleiro numa cabeça que dorme. E a
dor, abafa-se pelo badalar dos gonzos do relógio. E umas mãos apertam um
pescoço, facilitando, contudo, uns pés que sacodem uma pança dilatada na zona
do fígado.
Exijo-lhe
que diga o local onde fez sumir aquela revolucionaria coxa, largos mesas antes
do 25 de Abril, lembro-lhe. Recusa aderir... e não berra porque ainda lhe
amacio o pescoço. Os pés de Gabriel amassam de novo aquela panca, que ofaz
borrar de merda conforme indicação do cheiro, coitado.
Aproximava-se alvorecer e o porco ainda recusava. Muda-se
de táctica. Outro aperto mais forte na cabeça do gajo, e este recolhe a
consciência para dentro. Levamo-lo para fora da quinta, Por ali de viatura
andamos por quelhas e vielas galgando tufos de erva e poies de merda. E nesta
fica o proscrito que à coca e ameaça de morte vomita informações válidas e
rascunha um mapa,
Ao abandono ficou e foi recolhido pela G.N.R.
Juntaram-no mais tarde a alguns que não conseguiram respirar o ar «puro» do
regime franqulsta. Dizia Gabriel que Sísifo removeu pedra. Eu removi alguns
calhaus na mente para entender de momento como seria possível encontrar naquele
documento subtraído à forca, um nome conhecido; o Marinho. 0 tal sindicalista
que, conforme disse pide, sabedor da
forca revolucionária de Susana, por motivos vários teria denunciado a operação
em curso naquela noite de aziago para o comité, aliás já a rapariga me
confidenciara de dúbias perguntas que ele lhe fazia. Detestava-o e com razão. A
retaliação não foi difícil. Preso por ser informador, sairia a breve trecho de
Caxias. E uma espera bem rígida ele a encontrou de noite aqui pelo Norte.
III
Já se
sabe como escava a toupeira. Penetra na
terra e não precisa de mapa. A sua orientação geográfica serve-se apenas dos
escassos sentidos que tem. Coisa que para Gabriel e eu, cegos que não somos,
era-nos impossível determinar sem mapa o
local onde possivelmente se encontraria Susana. A acreditar no dito, faz-se a
traçagem do terreno. Um muro aproximado de 10m de comprimento faz de cateto dum
triângulo desenhado. Temos então a base dele à esquerda, por onde percorremos
dois passes e agora em frente a 90° até encontrar a hipotenusa. Pronto, aqui
está o ponte da escavação. Inicio o corte no solo, vibrando a picareta. Cortar
a terra, cortar ... eis que encontro a 1 m de relevo qualquer coisa. Exala um
fedor estranho, Parece provir de carne podre, insuflo a ideia. Devem ser apenas
bifes desnaturados de algum talhante que não os vendera, digo-lhe. Mas não,
eram ossos e dois crânios de cães podres. Desisto, saio fora do buraco. Então
fez-se luz nos olhos de Gabriel. Salta para cima dos ossos, e ali mesmo apanha,
apenas, uma prótese de plástico familiar quase submersa sob aqueles escombros.
Aninha-se. Levanta-se e de dedo apontado grita-me - Susana esta aqui debaixo.
Ah malditos, mataram-na e puseram-lhe cães mortos por cima ... - Agora já não
era precisa qualquer ferramenta, aquele seio de plástico dizia-lhe estar já
perto do corpo. Remexe, aparta aquele Impeditivo monte de ossos pendurados uns
aos outros por chaços de carne com pelo. Eram pretos os animais, mas mais
escuros estavam os nossos corações. A
vista, sob os nossos olhos Incrédulos, aparecem, cruelmente, outros ossos, as
ossadas da nossa querida Susana. Fico fixo. Contudo os nervos faziam-me tremer
na 'borda daquele lúgrebe buraco. Gabriel não perde tempo. E ai medi realmente
a profundidade do amor dele por ela. Desata a lamber sofregamente aquelas ossadas,
não sem deixar de produzir gritos histéricos e estridentes, o que arrepiaria
qualquer boi vadio que de momento passasse. Não importa o fedor intenso naquela
fossa de morte; ele guinchava de alegria que nem um cão doido que encontra o
dono perdido ao fim de longo tempo de separação.
A cabeça
ainda se conservava bela. Com menos pele, nalguns pontos rareava. O que
permitia ver a entrada e saída de morcões e bichos sapateiros, A dentadura
postiça, essa que tanto amor fizera com a dele, sempre que os dois as pousavam
em copos de agua no acto próprio de se lamberem um ao outro, segundos antes da
fornicação. Não pode haver dúvida, é Susana.
Os cabelos
pretos quase estão intactos, Neles escorre óleo dissolvido em terra, que nojo.
Gabriel acaricia-os. Da roupa só há
restos esfrangalhados por entre aqueles Infindáveis ossos. Há carne
ainda dispersa pelo corpo. E a dos lábios chamam-no, carne também do meu sexo,
carne libertina e lânguida aberta sobre meu corpo. Ele beija-os com
profundidade. Levanta depois cuidadosamente a cabeça e restantes ossos ligados
entre si por filamentos que resistiram à acção da terra. Agora, cara com cara,
beija-a de novo em pé no buraco, Não importam os bichos que brotam das
entranhas e saem por zonas cavernosas no pescoço e pe1as fossas nasais.
Não
importam os relevos de milhares de roedores de carne, que ele diz fugirem pelos
inter-sticios daquela pele outrora macia e odorosa. Ah, que loucura reencontrar um ente querido
...
Acabo com
aquela maceração. Salto para a cova e chamo-o à realidade. Há que partir. Há.
que içar o corpo e enfiá-lo num propositado esquife. Este é levado para a
viatura. Carro carregado, alguns 20 quilómetros, e há que rumar com o cadáver
para a quinta.
Decididamente
autorizara trazer o corpo para aqui. Um sonho de Gabriel poderia
materializar-se. Ininteligível para a minha pessoa, decidiu ele deixá-la
desfazer-se em tempo de democracia. Sim,
enquanto o regime durasse. Dizia ele,
tem que se render homenagem a uma lutadora, a quem o Estado português não
decidiu descobrir o seu paradeiro e prestar-lhe as devidas exéquias. Fenómenos
que não tem faltado por aí, em que contestadores de outrora, agora não passam
de porcos, os quais só chafurdam em gabinetes bafientos. Vai mal a saúde do
nosso regime… E muitos destes que injetam decisões nocivas no aparelho do
Estado, esmagando o povo, pelo qual se penduraram nas suas propostas
eleitoralistas, são mais putrefactos que este cadáver que ali atrás salta no
caixote. Armam-se em sacrários inatingíveis, a eles, só a eles é atribuída a
verdadeira sensibilidade de necessidades deste povo a que pertenço,
Esta lutou
por um regime desinfetado de corruptos, que então despojados deixaram porém
sementes hibridas. Grassam já; desde o doutor, que contestava o regime no
Parlamento fascista, ao miserável que por melhores dias atafulha de presuntos
os buchos das fontes de ilegais favores. Susana lutou (como outros a quem a
televisão, jornais e organismos de estado não conhecem as moradas) na
clandestinidade, pela ideia de termos um país onde as árvores possam crescer,
as crianças medrar, os adultos viver e os velhos, se é que o são, não perderem
a esperança de acreditarem nos novos. Porém, não lutou agregada a partidos
amigos de blocos militares que se degladeiam na digestão atómica do Mundo; não
chamou a si, porque foi, a liderança, a agitação dos estudantes de Coimbra
quando então vaiaram o chefe de Est ado.
Ah Manel, a
Susana terá a sua justa homenagem, Pode não ser justa aos olhos daqueles que
detestam aleijados. Poderão pensar que ela não quantificava em si os elementos
puros, estéticos e físicos que devem constituir um ser revolucionário, que ela
não deveria assumir essa personalidade apenas por elementos compensatórios de
alguma desgraça, neste caso, raquitismo ... Há ainda muito miserável que pensa
assim. Mesmo que isto fosse verdade, o que conta é a tomada de consciência,
depois o restante e mesmo aparente, como é a nossa democracia que entretanto
enferma.
Ultimamente
a minha casa sofrera obras de restauro, principalmente no tecto e telhado.
Finda as obras uma moleza confrangedora impediu-me de desmontar a prancha das
obras. Apoiada sobre quatro barrotes a altura
de 1,70 m,
a sala esperavas melhores dias. O que acontece. Não fora por acaso que Gabriel
atinga 18 valores no curso final de engenharia. Então, chegados dessa pequena
viagem, toma ele toda a coordenação das ações decorrentes. Enquanto o corpo de
Susana repousa, dá voltas a quinta como se soubesse exactamente que ia fazer. E lá. decide. Pede um serrote e
abre um buraco na triste prancha. Há que buscar o caixão. Tampa aberta, e
solicita que eu colabore… Ajudo-o a elevar o corpo de Susana para cima do
estrado. Saca um vestido de cetim branco do seu saco de viagem. Depreendo que
tenho que ajudar a vesti-la. Pronto já
está. Servindo-se da roupagem, Gabriel arrasta os ossos até à abertura rasgada.
Lê na minha expressão vítrea que não
entendo Diz-me: então não entendes que
tudo isto faz parte da engrenagem? Aqui hão-de acontecer as devidas exéquias a
esta lutadora. Não entendes que este buraco deve ficar a tangente do corpo
dela, pelo qual passarão cabeças por mim escolhidas!? Comeram-lhe a carne hem?
O seu corpo será lambido, dissera alguém, ManeI. Mas, Gabriel, que horror!
Calma, continua, isso será na devida altura. Quem lamberá, queres saber, hem!?
Então achas que te incomodaria se não houvesse precisão no que devo fazer?!
Não, de modo algum tu merecias isto sem programa definido. Deste consta rapto
de políticos sedentos de poder, que a trombarão até à eternidade. Um a um virão
aqui prestar-lhe a homenagem que ela merece. Aliás até será mais um esgar de
agradecimento por estarem na estrutura do Estado. Para isso lutou ela e pagou
com vida. Por isto tratei de tudo. Organizei um comando operacional com armas
desviadas por elementos importantes no exército. O que não foi difícil; esta
coisa da descolonização em África descontrola qualquer contabilidade exacta de
espólio. A esses políticos obrigá-los-ei a limpar as Impurezas deste corpo. Não
será. um trombar erótico, ou um roçar rápido cuja distância entre a língua e a
zona a atingir se processe num valor aproximado de 0,3 de milímetro. Nada
disto, é um actuar com ritual, respeitoso; como se ai existisse um
confessionário de culpas e traições.
Gabriel
parecia demoníaco, um louco nestas descrições. Pensara eu que sempre o conhecia
desde a nossa infância. Mas o mundo é cruel, tolhe as pessoas. E aquelas que
nos mais afectam sofrem transformações
sobre as nossas pálpebras. Também eu
mudei. Se assim não fora como
entenderia!? Todos os seus gestos eram já mecanizados, dominados por
saga doentia, mas, confesso, concertantes com as palavras. E estas completam o
quadro. Tornarei este habitat incandescente. Ali, nos quatro cantos serão
colocados reflectores que encandearão qualquer rato que por aqui apareça. Uma
coroa de espinhos esperara meu ser
amado. Será colocada na sua excelsa cabeça. E aquele cetim branco, reflectindo
a luz diáfana das lâmpadas, dar-lhe-á o travo aparente duma noiva que morrera
virgem. Ah, será tocado o hino nacional em presença de cada político. Será
então aberto o vestido, descerá a
língua de cada um sob a coacção das armas, e a mão direita política passará por
fora das tabuas ao encontro da perna doente. Por fim serão concluídas as
exéquias e a perna doente fara tocar ao sino, um sino deveras necrófilo, porém
festivo, no qual Susana será o corpo principal e a língua escolhida de limpeza
será o badalo que toque e faça timbrar este corpo bendito ...
IV
Alguns anos
passaram e a Revolução subsiste. Eleições, governos sucessivos, presidentes,
naipe de políticos…, e tudo se define. Miséria muita; paulatina, mas violenta;
é a abertura do ângulo que afasta os ricos dos pobres. Paradoxalmente gozam
estes menos prerrogativas comparadas com aquelas que usufruíam antes do 25 de
Abril. Não exactamente pelos quantitativos mensais, não por já não mandarem os
seus filhos para Africa; não por não terem liberdade métrica. É sim pelo engano
a que estão votados, pela usurpação social do seu estado económico, pelo
açambarcamento dos seus votos, pela polícia que lhes mandam quando refilam.
Também estas esperas regime fascista
lhes fazia. A história é recente, elucidará qualquer Incauto que deseje tomar
consciência destes fenómenos. Mas pode acontecer que sintam também as minhas
preocupações. Triste conceito tenho, agora que escanei a consciência àcerca da
sorte deste povo. Também quase me sinto defraudado em ter conhecido Susana. Não
como mulher, não como revolucionaria, não como fortuita amante, mais pelo seu
ideal que, incompleto para mim, contudo arrastou-me para esta minha profunda
agonia,
E a
política é assim, Enquanto uns vão perdendo as linhas virtuais da Revolução,
outros estão quase satisfeitos com o possível desfecho dela. Prepararam-se,
souberam ter paciência. Mudaram de cor conforme as flutuações políticas do
poder. Força que a estes lhes enche os cofres abertos na altura das
incomensuráveis fugas para o estrangeiro. Esperam hoje no escuro da noite o
Messias salvador da peste branca, ou algum D. Sebastião que tenha regressado de
Africa ... todos estes fazem parte do povo lusitano, é certo, mas não é só com
eles que opais vive. Há a imensa maioria anónima. Simples hospitaleiros, cegos
apoiarão qualquer arguto que se diga carismático. Do clero receberam já o dom
de perdoar sob tempestades rígidas os erros dos pretensos libertadores, então
já fugidos para o estrangeiro, ou encapoeirados nalguma embaixada amiga. Porém,
agora, e do presente que se vive, não perdoarão esses bandos armados que
assaltam bancos e matam agentes de autoridade. A não ser que a miopia cultural,
herdada do regime deposto os façam entender a forca da lei, lei que já prendeu Gabriel Fernandes, e que se encontra
ainda sem julgamento. Também a este não o condenariam, se entendessem que a violência gera a sua comadre; e se
apercebessem que esta percorre os canais sanguíneos duma espiral que não
termina nem no mais infinito. Eu, nem por ser ainda traficante de gado deixo de
pertencer a este povo. Sou ao menos um cobarde, afasto-me dos conflitos
sociais, além de tudo sou cagarola, e abstenho-me de berrar ao mundo que a
política me mete nojo. Mas delactor
não o
sou, provo-o ! Guardo comigo o segredo da sorte de Susana ,que ainda ali
padece.
Logo após a
prisão de Gabriel, impunha-se dar sumiço ao corpo de Susana. Pensei mesmo
levá-la de noite para cemitério e
enterrá-la no jazigo dos meus pais. Azar meu e dela também. Acontece que
entretanto torna cargo o 1º guarda
nocturno nesse longinquo e tão perto lugar, Situação já prevista. Estava na
hora de acabar os roubos de cadáveres frescos. Constava¬-se para ai que eram
vendidos a peso a um Instituto Anatómico.
Permiti
pois, a Susana, uma letargia sem incómodos durante alguns anos .
………………………………………………………………………………………………
Ontem não
aguentava com os latidos do ministro. De focinho na porta da sala fúnebre não
arredava pé. Junto as suas patas fluía uma viscosidade estranha, pegajosa…
Estranha intuição arrepia-me, eram horrorosos os meus pensamentos... as minhas
premunições. Aquele líquido continha o mesmo cheiro a alecrim que o corpo vivo
de Susana então fazia fluir. Abri a porta. Acendi a luz, tudo era dantesco, A
luminosidade incandescia-me em múltiplas cortinas de teias de aranha. Logo sou
embatido por uma esquisita bafarada, que tolhe o meu cão e o põe em fuga. Que até aterrorizaria um morto, Mas para uma
morta avançava eu. Um ser inerte a quem ratos roíam até a minha aproximação.
No soalho 0
visgo humano caia do palanque. Formava fios constantes, translúcidos, e
atravessavam densas teias de aranha. Alguns guinchos ouvi ainda, seriam os
ratos na disputa de carne.
Subi ao
estrado. Estava em frente de Susana. Abro o sudário literalmente roto e ungido
de pó. Agora o corpo esta quase reduzido a ossos, alguns dos quais roídos pelos
rates, Apenas mantem-se alguma pele sobre o ventre. Agride-me uma deformação ali dentro. Mas
entendo. É que a história e cínica.
Susana que apodrecera em paralelo com a democracia deste pais, pais que já não
fecunda a não ser miséria, corrupção e violência do poder, assume agora um
filho, o filho de Gabriel.
Rebento que
impõe a sua autonomia. Um-braço decidido
rompe o ventre fraco e desnudado, De mão aberta, braço esticado, lívido, aos
meus olhos esbugalhados parece que se agita vivo planando como se fosse a
última pomba da liberdade.
Virgílio Liquito (Porto. Portugal)
Publicou alguns livros em prosa. Participou em revistas (Última Geração e Pé de Cabra), então sediadas no Porto. Colaborou com poemas nos eventos de Versos Soltos, em Espinho. Participou Em Filo-Cafés em Portugal e Galiza. Colaborou na Porta Verde e regularmente no Círculo Poético Aberto, cujos eventos têm sido lavrados no café Uf, em Vigo, Galiza.
Publicou alguns livros em prosa. Participou em revistas (Última Geração e Pé de Cabra), então sediadas no Porto. Colaborou com poemas nos eventos de Versos Soltos, em Espinho. Participou Em Filo-Cafés em Portugal e Galiza. Colaborou na Porta Verde e regularmente no Círculo Poético Aberto, cujos eventos têm sido lavrados no café Uf, em Vigo, Galiza.
(Publicado em Elipse 2, 3, 4 e 5)
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